21 - Viagem ao centro da terra
Uma travessia entre fronteiras reais e imaginárias no coração da América do Sul
“Las tenues luces de un pueblito, que por las características que presentaba debía ser Leticia, asomaban sobre la margen izquierda del río. Inicia enseguida, con gran ardor, la tarea de acercar la balsa a las luces y aquí el desastre: el armatoste se negaba en forma intransigente a arrimarse a la orilla, empeñado en seguir su camino por el medio de la corriente.”
Ernesto Guevara em Diários de Motocicleta.
Foram entre sete e oito dias naquele ambiente completamente desconhecido: ali, partia para a realização de um sonho que na verdade, nem lembro muito bem como surgiu. Há quase dois anos vagava costurando o mapa do Brasil entre litorais, sertões e florestas tropicais, era chegada a hora de traçar novos planos me embrenhando para dentro do meu continente.
Por quase seis meses, viajei dois estados que envolvem a floresta amazônica brasileira, Pará e Amazonas. Dentre o banzeiro e as chuvas que caíam como uma cachoeira interminável dos céus do Brasil, encontrei tudo o que poderia imaginar — e até muito mais do que poderia esperar. Entocado no meio do mapa do Brasil, sem qualquer estrada que me levasse para outro lugar, aprendi a me relacionar com o movimento dos rios. Primeiro, o Tapajós, que em sua época de cheia, chegava até nossas calçadas tornando natureza as ruas pavimentadas com o concreto cinza das cidades. Em outras circunstâncias, foi a vez de conhecer o Rio Negro, o Juma, Arapiuns, Urubuí e tantos outros que vão cortando nossa floresta até virar o tão famoso Amazonas, o qual pude viver dentre travessias de barco, comunidades ribeirinhas e vilarejos que margeavam o maior rio do nosso continente.
Os rios caudalosos que atravessam nosso continente, o cortando como uma veia que irriga todos os nossos arredores são também, dentre muitas coisas, territórios espirituais. Na forma de que se relacionam com nós, com nossa vida social e com nossos ciclos literalmente como seres humanos pertencentes à esse ambiente.
Após o crime cometido pela mineradora Vale em Mariana, assassinando além de milhares de pessoas, matou-se também ali um Rio. Para os Krenak, povo indígena da região do Rio Doce em Minas Gerais, aquele gigante corpo d’água era mais que tudo, um parente. Apesar de em nossa constituição sermos os únicos seres com direitos garantidos, a vida se estende muito além do que alcançamos enxergar com nossa tão limitada visão.
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Na Amazônia se ouve: Rio, é rua. Pela falta de estradas — e da possibilidade de construí-las — muito da realidade amazônica se dá através dos infinitos Rios e Igarapés que banham os milhares de hectares de região. Desde as casas de palafita às comunidades mais desenvolvidas até as grandes metrópoles nortistas, a vida circula por vias fluviais: do lazer à labuta. Navios, canoas, lanchas e as famosas voadeiras são os veículos tradicionais de cada vilarejo.
Era nesse cenário que, junto com Gabriela, dávamos nosso primeiro tchau pro Brasil. Um sonho que curiosamente, acompanhava os dois ainda antes de nos conhecermos: atravessar o Rio Amazonas de barco até chegar na fronteira colombiana, a divisa das cidades de Tabatinga (BR) e Letícia (COL) — e de brinde, uma ilha ribeirinha pertencente ao Peru, Santa Rosa do Yavari, às margens de onde Rio Javari se encontrava com o Rio Solimões.
Travessia: 1600km dentro da Amazônia
— 400 reais, com as três refeições todos os dias. O Barco parte amanhã. — Era o que me dizia a atendente da empresa de navios que, semanalmente, atravessavam os 1600km que separam a cidade de Manaus com a fronteira colombiana levando cargas e centenas de pessoas que de vilarejo em vilarejo enchiam aquele barco com suas redes de pano e, provavelmente, muita história de vida.
— Quantos dias de viagem?
— Entre sete e oito, dependendo do nível do rio. — Era o que levaríamos para chegar na nossa primeira (e desconhecida) fronteira.
Uma viagem de sete dias de barco pelo Rio Amazonas (ainda Solimões, pois não havia se encontrado com o Rio Negro), dormindo em redes, sem internet e qualquer tipo de distração dentro do navio além da pequena televisão que transmitia os debates políticos da eleição presidencial de 2022; a lanchonete-bar do terceiro e último piso do navio — que depois de algumas noites se transformava em cabaré, guiado pelas cafetinas e traficantes que também faziam a viagem rumo à cidade de Tabatinga — e a interação com a população local que rendiam excelentes histórias.
Sagrado Coração de Jesus era como batizaram o navio que durante aquele semana me serviria de casa. Chegamos cedo, algumas horas antes do barco partir, para armar a nossa rede e escolher com calma onde seria nossa cama, seguindo as dicas universais de uma viagem como essa: fique ao lado de famílias, crianças e senhoras mais velhas. Obviamente, buscando uma certa dose extra de segurança naquela situação completamente desconhecida.
Atravessar o Rio Amazonas naquela monótona viagem era também um mergulho interno nos meus sentimentos de despedida do Brasil, uma revirada nos sentimentos que desde então já cultivava pelo meu continente latino-americano e uma imersão fronteiriça entre os limites do conhecido e do desconhecido. Como um looping infinito dos dias que se passavam lentamente e com pouca diferença, o excesso de tempo e a falta de estímulos eram um convite para revisitar sentimentos e prever o que viria em frente.
Diariamente, ao redor das seis horas da manhã, o movimento das pessoas começava a surgir; com exceção daquelas que já acordavam com orações ou bachatas no volume máximo, a maioria dos passageiros se despertava pouco a pouco em direção ao café da manhã oferecido no refeitório do navio: pão, manteiga, uma fruta e café com leite — suficiente para segurar a fome por algumas horas até o almoço, novamente, uma pratada de arroz, feijão, macarrão, carne ou peixe com muita farinha era servido sem miséria. Naqueles momentos, o barco inteiro se reunia e era fácil interagir com outros passageiros que compartilhavam aquela longa viagem.
Na verdade, é essa a única distração que poderia haver por lá. Navegando contra as correntes do Rio que descia em direção ao mar, poucas vezes a paisagem ao redor mudava ou algo interessante acontecia para chamar a atenção e despertar certa curiosidade: um boto aqui, uma comunidade isolada ali. Depois de alguns dias, tudo já era bem igual. Ali, interagir com os moradores locais era a melhor ideia. Uma oportunidade de entender mais ainda a vida das comunidades da região, o motivo de cada um e o que existia por trás de cada rede armada nos mais de 400 pares de tornos em todo o navio. De trecho em trecho, verdadeiras cidades à margem dos rios apareciam: regiões sem nenhum outro tipo de conexão com estradas ou aérea, abastecidas exclusivamente através dos caminhos fluviais; de remédios e atendimento médico aos gêneros alimentícios. Naquele cenário, dezenas de trabalhadores entre eles homens e mulheres viajavam durante 15 dias entre idas e voltas da capital amazonense para manter o ciclo que existe naquele território prestando seus serviços aos barcos de transporte que levam dentre pessoas e cargas.
— Pra mim, a parte mais difícil é deixar os meus filhos em casa. São 15 dias fora de casa que a gente perde muita coisa. — me contava uma das trabalhadoras do barco em um momento de interação.
Bienvenido à Colômbia
Era o oitavo dia de viagem quando o navio atracou no pequeno porto da cidade de Benjamin Constant, às margens do Rio Javari. Ali, era preciso pernoitar no barco para no dia seguinte tomar uma nova lancha em direção à cidade de Tabatinga. O rio estava baixo, era impossível um grande navio chegar por lá.
Uma avenida separava a pequena cidade de Tabatinga da colombiana Letícia. Nenhuma aduana, controle de imigração ou qualquer posto da polícia federal gerenciava o trânsito entre as duas cidades. Dali também não existiam muitas saídas: um total de zero estradas podiam ligar as duas cidades à qualquer lugar dos outros dois países; ainda assim, um excesso de motos e tuk-tuks circulavam pelas duas cidades. Aquele fim do mundo havia criado o seu próprio ritmo. Pagar com reais ou pesos ali não fazia muita diferença. Falar espanhol ou português, tão-pouco. E por se tratar de uma fronteira tripla, agregando também a ilha peruana de Santa Rosa, nas ruas mais movimentadas do vilarejo de Tabatinga se encontravam os famosos ceviches, tradicionais Inca Colas e as mais conhecidas cervejas, cusqueñas.
Lugares como esse são um bug no pensamento ocidentalizado e imperialista que nos divide entre diferentes países, nacionalidades e idiomas dentro de um território tão similar.
— Se você perguntar à um tikuna se ele é brasileiro ou colombiano, ele vai te responder: Sou Tikuna. Nós não temos fronteiras. Tikunas são Tikunas. Sem nacionalidade. — Era o que dizia o guia indígena do museu local na cidade de Letícia, sobre os povos originários da região fronteiriça dos três países, provando que um par de linhas imaginárias criadas a efeito de colonização não são capazes de definir uma cultura complexa, principalmente em uma região tão negligenciada pelos três países que às administram.
Dali, já em território colombiano, com a ansiedade de conhecer o primeiro país e carimbar meu passaporte em outras terras sul-americanas, horas depois de realizar um sonho antigo, eu entendi que eu viajei por 1600km através do maior Rio do mundo em busca de uma fronteira, para enxergar que na verdade o que nos separa está apenas em nossa imaginação. Naquele instante, me vi integrado ao meu continente: da Amazônia ao Caribe. Da cordilheira dos andes até o sertão. Da terra do fogo até o muro que divide nosso território político. Quando eu comi um ceviche ainda em terras brasileiras e recebi um troco em soles já na cidade colombiana percebi que eu atravessei o Brasil inteiro, para enxergar no coração do nosso continente que tudo isso que eu imaginava que podia nos dividir, na verdade era o maior símbolo da nossa unidade.


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Para ler:
Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo (da autora Eliane Brum)
Para ver:
Lá nos embriões do Vozes da América, eu documentei essa viagem em um pequeno vídeo no canal! Acessa esse link para assistir.
Te espero na próxima newsletter!
Muchas gracias,
Hasta luego!
que bonito relato de viagem! é engraçado como descobrimos outras maneiras de pensar o mundo ainda na fronteira do "nosso mundo". me pergunto como seriam as coisas sem essas demarcaçoes...
Super gostei, amei. dias atrás estava comentando sobre essa travessia, que na época acompanhe seguindo as postagens do @asaseraizes. tentando recordar os nomes das cidades e os países que fazem fronteira. direpente, chegou no momento certo, conexão maravilhosa.
já ouvi falar nessa travessia por alto em reportagens do Globo Repórter, penso que é uma experiência incrível em uma região ímpar. um dia, quem sabe, uma oportunidade dessa chega, sargitarina que sou, sem duvidas embarcarei nessa.